"Quando der, você vai!"
Desde que eu me entendo por gente, eu sempre quis ser artista. Já na infância eu sonhava com o palco, sabia que ali era o meu lugar, minha segunda casa. E eu sempre demonstrei isso das mais variadas maneiras... Mas infelizmente eu não nasci em berço de ouro, venho de família simples, sofremos muitas privações. Eu não posso dizer que não tenhamos tentado, mas na grande maioria das vezes, por conta das circunstâncias, aquilo que eu sonhava e que poderia ter sido uma profissão de sucesso acabou ficando pra depois. A frase que eu mais escutava "Quando der, você vai!", mas o "quando der" nunca dava.
Meu primeiro sonho era ser atriz de teatro. Com ênfase no "de teatro". Eu era muito específica! Como diz o gênio no live action de Aladdin, "o segredo está no detalhe". Desde pequena, minha mãe sempre me levou ao teatro para assistir as peças infantis, eu adorava estar em contato com os artistas no palco e queria ser parte daquele mundo. Sinceramente, não lembro da minha mãe ter me levado em alguma escola para saber o quanto custava e como funcionava.
Certa vez, quando eu tinha por volta de uns 11 anos, nós vimos uma entrevista na TV Cultura com o Beto Silveira, um importante professor de teatro. Nós ficamos tão encantadas que escrevemos para um programa de TV da época cujo intuito era realizar sonhos, e eu pedi um curso com o Beto Silveira. Infelizmente, hoje eu chego a essa conclusão, aquele programa só atendia pessoas que moravam nas periferias e favelas. Apesar de ser de família simples, nunca chegamos a esse extremo, sempre tivemos a sorte de morar em bairros bons e em casas boas. Talvez esse seja um dos motivos de eu não ter sido contemplada.
Entre 13 e 14 anos, eu tive a sorte de fazer um curso livre e gratuito de teatro que estava sendo oferecido na biblioteca do bairro que eu morava na época. Fiquei sabendo por acaso através de uma colega de escola. A faixa etária para se inscrever era de 16 anos pra cima, mas a vontade de fazer teatro era tanta que eu fui mesmo assim. Chegando lá, para minha surpresa, a grande maioria das pessoas que compareceram tinha a mesma idade que eu! Uma ou outra pessoa estava na idade desejada... A professora não teve escolha e aceitou todo mundo. Eu fiz mais ou menos uns 8 meses de curso. Não lembro exatamente o motivo, mas aconteceu alguma coisa e eu acabei não indo mais. Como meu foco se voltou para outras formações, acabei deixando o teatro de lado. Se não fosse por esse curso, provavelmente eu não teria feito uma aula de teatro na vida, pois a máxima era sempre "quando der, você vai!".
Justamente no começo dos anos 2000, quando eu tinha uns 11 anos, eu já estava começando a demonstrar interesse pelo canto. Sempre gostei dos desenhos da Disney, sou da época de Sandy & Junior e das apresentadoras infantis. Uma das minhas preferidas era a Eliana, e no programa que ela tinha na Record havia um quadro onde a criança poderia mostrar o seu talento. Eu era maluca para participar, uma das músicas que eu queria cantar (toda hora eu mudava de ideia rsrsrs) era Viagem ao Passado, tema da animação Anastasia. Infelizmente, a condição para ser selecionado para o quadro era gravar em vídeo o talento da criança, e ter uma filmadora na época era para poucos. Minha mãe tentou ligar na produção do programa, pois eu queria de todo o jeito, mas como eles não tinham como avaliar o meu talento, nessa condição eu só poderia participar se dublasse a canção desejada. Como vocês podem imaginar, acabou não rolando...
Independente disso, o desejo cantar permaneceu e eu queria muito fazer aulas! Cheguei até mesmo a fazer uma experimental na escola de uma amiga da mãe, mas de novo a máxima "quando der, você vai" imperou. Por eu ter me interessado por outras coisas, o canto acabou ficando restrito aos momentos de lazer, quando eu ia no karaokê ou nos eventos de anime que eu costumava frequentar até o final do ensino médio. Aquele "quando der" acabou dando... 20 anos depois!
No ano passado, após gravar, de forma despretensiosa, um vídeo cantando uma canção para o meu namorado que está em Israel, minha mãe se emocionou tanto com o resultado, com a minha entrega naquela música, que começamos a conversar sobre aquele sonho que eu tinha e nunca havia saído do papel. Eu estava ganhando um salário fixo, minha mãe virou pra mim e falou: "filha, vai atrás do seu sonho!", e eu fui. Infelizmente, a empresa que eu trabalhava encerrou as atividades no fim do ano passado e eu tive que interromper as aulas em fevereiro desse ano.
Enquanto o sonho do canto ficou nos momentos de lazer, o sonho do piano veio com força total! Lembro que quando criança, meu avô paterno fazia muito gosto que eu aprendesse o piano e já naquela época eu demonstrava interesse. Ele com certeza teria ajudado financeiramente nessa formação, mas infelizmente ele veio a falecer em 1998, na época da Copa da França, então acabei não tendo esse respaldo. Eu só comecei a frequentar o conservatório aos 16 anos, fiz algum tempo e tive que parar. Meu primeiro professor, hoje já falecido, ao me dar aulas costumava dizer: "Você pode me vestir de ouro que eu não faço milagres. Você tem o talento!". Mas como conciliar o desenvolvimento de um talento com a falta de dinheiro? O resultado foi que, algum tempo depois, eu tive que sair do conservatório, e de novo, por conta das circunstâncias, o meu sonho ficou de lado.
Eis que chegou o último ano do ensino médio. O meu sonho era a faculdade de Música, piano clássico, e eu estava convicta... Mas aí eu inventei de fazer uma prova de admissão da Escola Municipal de Música do Theatro Municipal de SP. Fui incentivada por uma amiga da minha mãe, que é cantora lírica do teatro, e por uma colega que conheci quando dava aulas como professora voluntária no CAJ da escola que eu estudava. E eu pergunto: pra que? Foi simplesmente um desastre! Não porque eu estivesse há tempos sem aula e não saberia tocar os tipos de composição que, para a minha faixa etária na época era pedido (eu teria 19 no dia do exame). Mesmo não podendo pagar um professor para me preparar, eu tive a oportunidade de estudar em um piano que havia na escola em que terminei o ensino médio. Mesmo depois de me formar, as portas continuaram abertas, eu só tinha que ligar e marcar pra usar a sala do piano. A questão foi outra e essa parte da história eu contei na íntegra nesse post. Pra resumir: eu me dei mal porque o professor achou um absurdo eu nunca ter assistido, até aquele momento, um concerto de piano ao vivo.
O fato é: aquele professor foi muito intransigente, e eu não era nem aluna dele. Imagina se eu fosse... Tempos depois, conversando com uma amiga que é professora de ballet aqui no interior, eu aprendi que a severidade de professores como ele se deve ao espelho que eles tiveram dos mestres deles. Mas existem jeitos e jeitos de se falar alguma coisa. Uma palavra pode edificar uma pessoa, mas também pode destruir. A maneira como as coisas aconteceram no dia daquela prova foram o suficiente para me fazer chorar por dias e não querer mais olhar para uma partitura sequer! Se não bastasse isso, a cereja do bolo ainda estava por vir...
No dia em que eu conheci a professora Corrá, na volta para casa eu passei por um conservatório e a ideia era só tirar uma informação, afinal a minha intenção ainda era fazer a faculdade de música. Ao falar com a recepcionista, a professora de piano e dona da escola escutou a conversa e quando soube do meu objetivo, ela foi taxativa: "você está velha para fazer faculdade de música!". Achei ela tão entrona no meio da conversa que eu não sentia vontade de fazer aulas ali, mesmo ela tendo oferecido uma experimental. Eu juro, eu não queria! Mas minha mãe virou pra mim e falou: "não é o seu sonho?". Acabei indo, tive outra percepção sobre a professora, mas como dizem, a primeira impressão é sempre a que fica.
Eis que no dia em que seria minha primeira aula, o que aconteceu comigo? Atravessei a rua para ir ao ponto de ônibus e simplesmente virei o pé do nada, duas vezes seguidas! Era um aviso dos céus? Com certeza! Acabei não indo naquele dia, mas fui na aula seguinte e frequentei o mês todo, e eu estava gostando. No mês seguinte, eu não poderia continuar, não tinha nem conseguido pagar a primeira mensalidade. Liguei pra professora dizendo que pararia, pois era melhor. Ela insistiu pra eu continuar, me dizendo pra pagar quando eu pudesse. Porque eu não escutei minha intuição? Acabei continuando e fui por mais algumas aulas até o fatídico dia...
Lembro como se fosse hoje: quando eu saí de casa, estava armando o maior temporal. Ao descer do ônibus, aquela chuva pesada me fez correr atrás de algum lugar pra me abrigar, pois a escola não era tão perto de onde desembarcava. Quando a chuva começou a estiar e eu pude chegar na escola, eu estava muito atrasada. Ao entrar, vi que a professora estava resolvendo alguns detalhes sobre um sarau que iriam fazer e eu não iria participar. O horário foi avançando e nada da professora me chamar para a aula. Pedi para começar sozinha, quando se passou meia hora, perguntei a ela se não me daria aula. Ao que ela me respondeu: "eu não vou dar aula para quem não estuda!". Ela disse isso em tom alto e na frente de todos que estavam naquela recepção. Eu nunca me senti tão humilhada!
Ela sabia que eu não tinha piano em casa para estudar. Ela sabia que eu fazia como podia na escola em que terminei o ensino médio. E pra completar, ela disse que me daria menos aulas por semana, uma ao invés de duas, e ainda fui taxada de disléxica. É verdade que tenho extrema dificuldade com coordenação motora, isso é muito nítido até no ballet, mas não significa que eu tenho um distúrbio de aprendizagem. O mais curioso é que, aulas antes, ela fez alguns comentários sobre alguém que ela ensinava e tinha dislexia. Eu nem podia imaginar que aquela indireta seria para mim. Infelizmente, quando se deve alguém, a primeira oportunidade que a pessoa tem de descontar, ela vai fazer isso, e no meu caso, foi do pior jeito possível!
O que eu sei é que terminei o meu horário de estudo solitário naquela escola e saí de lá pra nunca mais voltar. E detalhe: eu não devo mais nada para aquela professora. A humilhação que ela me fez passar foi pagamento suficiente por aquele mês de aula! Esses dois episódios, da Escola Municipal de Música e desse conservatório, aconteceram em um período de três meses. Eu nem havia me recuperado do primeiro baque e passei por outro pior ainda. A única coisa que eu tiro dessa experiência amarga é que eu realmente entendi que, naquele momento, eu não teria condições de prestar o vestibular de música como eu queria, pois nesse curso não se entra para aprender do zero. Eu teria que ser exímia, estudar oito horas por dia, mas como fazer se nem piano em casa eu tinha? O teclado seria uma alternativa, poderia quebrar o galho, mas o peso das teclas não é o mesmo. E eu queria fazer direito! Além de estar afastada há anos sem tocar nada, eu prometi a mim mesma que eu só vou voltar pro piano o dia que eu tiver o meu instrumento. Humilhação? Nunca mais!
Voltando um pouquinho no tempo, aos 14 anos o ballet surgiu na minha vida. Tive experiências com dança na infância, mas até então não enchia o meus olhos. Foi só quando O Quebra-Nozes ganhou meu coração que eu resolvi entrar no mundo do ballet, mas quem disse que seria fácil? Uma coisa é certa: se eu tivesse começado nessa época, eu teria tido a possibilidade de seguir carreira em companhia. Tomo como exemplo a trajetória da Luiza Yuk, ela começou com essa idade, teve uma boa formação e hoje é bailarina da São Paulo Companhia de Dança. Ela tem carteira registrada, ela recebe salário, férias, 13º, tem todos os direitos assegurados... E depois ainda dizem que dança não é trabalho, né? Bom, a minha realidade foi bem diferente...
Na primeira escola que fui tirar informação, foram taxativos: "você está velha, não pode mais se formar. Só pode fazer aula pra manter a forma". Eu nunca me conformei com isso! E pra ajudar, a situação financeira não colaborou. Mais uma vez, a máxima "quando der, você vai!" imperou. Somado a isso, o agravante: "a dança não vai dar retorno financeiro, já está tarde...". Pra Luiza também era tarde, mas ela pode ir, conseguiu e está tendo retorno, não está? Por que comigo não poderia ter sido assim?
Como dizia a minha avó materna, não dava pra abraçar o mundo com os dois braços! Ou eu me dedicava ao piano ou ao ballet. Eu tentei o piano... E bem, o resultado vocês já sabem. O ballet eu só pude começar aos 22 anos, quando eu já estava trabalhando. Eu iniciei essa jornada que não foi e não tem sido nada fácil!
Resumo da ópera: eu tentei ser artista de todo o jeito, mostrei talento para várias vertentes. Mas apesar de ter apoio, a falta de estrutura colaborou para os nãos que recebi. Para o ballet, em companhia não dá mais. Eu até posso conseguir todas as formações que a Royal me permitir e também ser espelho para muitas pessoas, mas uma coisa certa: eu nunca vou poder dançar todos os papéis que eu gostaria. Para o piano, eu realmente não sei. Nem o instrumento eu tenho ainda... Já o teatro e o canto, a nível profissional, acredito que ainda seja possível.
Minha mãe sempre me conta que, quando criança, eu costumava dizer que "eu nasci uma estrela". Se me perguntarem, eu não me lembro de nada disso! Mas fico me perguntando... Será que um dia, essa estrela ainda vai brilhar como sempre sonhei? Isso, só o tempo vai dizer...
Com a pandemia, muitas óperas e balés de companhias famosas foram disponibilizados. Então começou meu interesse por este mundo maravilhoso. Como tenho muito tempo livre, comecei a ler muito sobre: enredos, compositores, cantores, bailarinos, coreógrafos e todo tipo de pessoa associada a este mundo.
ResponderExcluirUm deles é o espanhol RAMON GENER. Ele tem duas séries de TV chamadas "This is Ópera" e "This is Art". Sua história lembrou-me o caso dele. Há muitos vídeos de suas palestras no Youtube. Cresceu num ambiente cheio de música clássica e óperas e, tal como tu, começou a querer ser cantor/ator de óperas (barítono), depois pianista, mas como ele diz, ainda quando ele vem de uma boa família, com possibilidades, ele não se destacava em nenhuma.
No entanto, Ramón encontrou uma maneira espetacular de permanecer neste campo pelo qual é apaixonado e que lhe permite compartilhar seu amplo conhecimento y paixao sobre o assunto com o resto de nós, mortais menos conhecedores. De sua mão, me foi possível entender o pano de fundo de muitas óperas e peças musicais. Atualmente, cada vez que o Palau de Barcelona estreia uma ópera que pode durar 2 ou 3 horas, ele é capaz de dar palestras de uma hora e meia falando sobre os detalhes dessa ópera.
Como exemplo coloco "o coro dos escravos judeus" o "Va, pensiero" que aparece na ópera "Nabuco" de Giuseppe Verdi.
https://www.youtube.com/watch?v=qVIzHbf9RP8
Certamente, cada pessoa é única no mundo, e a combinação de talentos e oportunidades certamente faz a diferença, mas como adulto, o aproveitamento dos recursos que você tem depende de você.
O caminho é sempre em frente, mulher corajosa! Desejo-lhe sucesso na sua vida pessoal e profissional. Um forte abraço e muitos beijinhos
Se você observar, o que o Ramon fez é o que tenho feito nos últimos 12 anos através do blog. Na impossibilidade de ser a artista de palco que eu sonhava, fosse no ballet ou no piano, eu passei a estudar tudo o que eu podia, conhecer ao máximo essas áreas e conseguir atingir o maior número de pessoas possível. Hoje, desenvolvi meus primeiros workshops sobre ballet de repertório, com toda a parte histórica e principalmente musical. Já que eu não posso ser Giselle ou Fada Açucarada, que eu possa ensinar e orientar aqueles que tenham essa possibilidade.
ExcluirE vou contar, eu descobri uma maneira de matar a minha vontade e dançar, pelo menos uma vez, alguma peça do jeito que sempre sonhei. Depois vou contar sobre isso em outro post :)
Obrigada pela sua presença sempre!
Beijinhos
Amiga sua estrela brilha e muito. De uma certa forma tudo oq vc faz no blog é uma forma de estar dançando.
ResponderExcluirSem você muitas pessoas não teria o acesso a grande obras. Não desista dos seus sonhos nunca mais